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NÃO DÁ PARA FUGIR DESSA COISA DE PELE

Documentário sobre Beth Carvalho mostra como a cantora viu no samba uma arma contra o racismo e a favor da democracia.

01 de março - 2023 às 12h07
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Piauí

Leonardo Lichote 

As imagens são de 1986. Têm textura VHS e estética caseira de filmagem de festa de aniversário. Paredes descascadas, conversas animadas, copos de cerveja pela metade sobre as mesas, uma mangueira enrolada num canto, um prato farto de feijoada, um pôr do sol no terraço num horizonte sem prédios, uma roda de samba que ganha a noite. Em off, ouve-se a voz de Beth Carvalho, aniversariante do dia, que completava 40 anos: “Eu fui me profissionalizando, eu fui entendendo as engrenagens da máquina, do sistema. Porque, graças a Deus, pais muito esclarecidos me deram muito respaldo nesse sentido de eu entender o lado político do país, o lado social deste país. E isso tem a ver com todo o meu trabalho. O fato de eu cantar samba tem a ver com isso. Não só pelo ritmo, não só pela beleza que é. Mas tem a ver com o lado político e social. Assumir a minha negritude.”

Localizada exatamente no meio das quase duas horas do documentário Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, dirigido por Pedro Bronz, a cena condensa muitos dos sentidos do filme. Feito a partir do extenso arquivo de áudio e vídeo produzido e armazenado pela própria cantora no decorrer da vida, o longa-metragem costura com leveza essas duas dimensões: de um lado, uma trajetória pessoal, íntima; de outro, o caráter público e coletivo do samba como força civilizatória, como afirmação de uma visão de mundo, como espaço de resistência política pela alegria, pela festa. Nos primeiros segundos de Andança, é anunciada de forma poética a perspectiva escolhida para o filme e a origem do material que a sustenta. O que vemos são imagens de uma câmera operada pela própria Beth, chegando ao bar Bip Bip, reduto do samba em Copacabana, e encontrando ali gente como os compositores Mário Lago, Walter Alfaiate, Moacyr Luz e Wilson Moreira. Intimidade e história trançados, sob o olhar da cantora.

Os vídeos e áudios impressionam e emocionam pela extensão de seu alcance. Vão do ouro puro da memória da música popular brasileira à suposta desimportância do cotidiano. Não se trata, portanto, de um compêndio de momentos históricos, apesar de muitos deles estarem ali: Cartola mostrando As Rosas não Falam e O Mundo É um Moinho para Beth, e dizendo que achava que ela cantaria bem a primeira, mas não a segunda; o áudio original da fita cassete que Zeca Pagodinho entregou à amiga com o hoje clássico Camarão que Dorme a Onda Leva, que gravariam juntos em 1983, lançando a carreira do cantor; o registro da Noitada de Samba, evento semanal que ocupou o Teatro Opinião ao longo dos anos 1970; a coleta em campo, gravador em punho, de sambas de compositores da Velha Guarda da Portela, como Manacéa, Casquinha e Monarco.
 


Há, porém, as imagens que capturam a banalidade na qual a vida se dá e onde o samba se afirma. Beth dançando madrugada adentro em frente à televisão, que transmitia um baile, num Carnaval em que ela se viu longe da rua, por força das circunstâncias. Uma roda de partido alto na qual Arlindo Cruz e Beto Sem Braço fazem rimas de improviso deliciosamente maliciosas, que tinham “farinha” como tema (“Eu sei que todo mundo quer/ Mas a gente também alucina/ Não quero ver é nego doidão/ Se atirando na piscina”). A cantora, grávida de sua filha Luana, barrigão ao sol na praia, logo antes de cobri-lo ao vestir orgulhosamente uma camisa do Botafogo.


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