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Região de Irecê: 178 famílias ameaçadas por ‘contingenciamento’ de recursos do estado

Sem verbas, trabalho de Educação Ambiental e incentivo à Agricultura de Base Ecológica foi interrompido em 90 áreas nos municípios de Irecê, Canarana, Ibititá, Jussara, Uibaí e São Gabriel.

22 de julho - 2015 às 08h24
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Fotos: Adriana Cerqueira / Sertão Baiano II Arquivo Ipêterras

Daniel Pinto

“Antes eu fazia tudo errado: se plantasse cenoura, não desenvolvia, a beterraba não vingava. Além disso, desperdiçava água e tinha um custo muito alto. Hoje minha produção aumentou, melhorou a qualidade e aprendi a importância do reflorestamento”. Palavras de Renilson Machado, 45 anos, produtor rural do povoado de Jurema dos Machados, no município de São Gabriel, norte do estado.

“Eu aprendi muito. Não fazia ideia de que plantando árvores nativas na minha propriedade o solo ficaria mais rico. O kit de irrigação que nós ganhamos também foi maravilhoso. Graças a Deus, minha terra garante o sustento da casa”, revela Isabel Soraia, 46, que planta e comercializa cenoura, beterraba, alface, coentro, pimentão, salsinha e outras hortaliças e verduras junto com a família no povoado do Esconde de São Gabriel.

“Há alguns anos atrás, minha pinha era de sequeiro [técnica agrícola para cultivo em terrenos com baixa pluviosidade]. Como tem chovido muito pouco, quase não há produção. Hoje, com a ajuda do pessoal, aumentei o espaçamento entre os pés de pinha, plantei árvores catingueiras, adotei o sistema de irrigação com fita gotejadora e estou bastante otimista. E tem mais: agora, eu mesmo vou vender meu produto, não quero mais conta com atravessadores”. Essa frase sintetiza a mudança de perspectiva do agricultor Edmilson Miranda, 52, do Guarani, outra localidade da zona rural de São Gabriel.
 


Além da simplicidade e do forte vínculo com a terra, os três personagens possuem em comum o orgulho de fazer parte do Projeto de Implantação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) para Recuperação Ambiental e Empoderamento Social no Território de Irecê, idealizado e executado pelo Instituto de Permacultura em Terras Secas (Ipêterras). O projeto - que saiu do papel graças ao convênio nº 013/2014, firmado entre o Ipêterras e a Secretaria do Meio Ambiente da Bahia (SEMA) - atende 178 famílias em 90 áreas nos municípios de Irecê, Canarana, Ibititá, Jussara, Uibaí e São Gabriel.


Agricultura de Base Ecológica

Além de assistência técnica, o Ipêterras distribui mudas, sementes, kits de irrigação e desenvolve um trabalho educativo de recuperação de áreas degradadas e incentivo à Agricultura de Base Ecológica, cujo principal objetivo é preservar os processos naturais em toda cadeia produtiva num esforço para conservação do ambiente e das espécies, sem utilização de agrotóxicos e insumos agrícolas industrializados. De acordo com João Gonçalves de Souza, presidente do Ipêterras, o convênio prevê a liberação de aproximadamente R$ 676 mil em duas parcelas. “A primeira delas (de R$ 405 mil) foi depositada no dia 28 de agosto de 2014, o que permitiu a sensibilização, mobilização e seleção das comunidades e subsidiou a contratação de técnicos, compra de material e cobertura dos custos de manutenção da etapa inicial de implantação das SAFs”, explica o dirigente.

Ainda segundo a mesma fonte, o Instituto de Permacultura em Terras Secas conseguiu otimizar os recursos disponibilizados e ampliar a abrangência do projeto: “inicialmente, iriámos atender 140 famílias, mas já temos 178 e outras três estão em processo de seleção. Seriam 13 comunidades, já estamos chegando a 23. Com muita dificuldade, conseguimos romper resistências e quebrar paradigmas que cercam a Agricultura de Base Ecológica. Em relação à primeira parcela, os relatórios técnico e fiscal foram aprovados com louvor por equipe de auditores do Governo do Estado”.

Mas, o que se desenhava como um bom exemplo de parceria entre poder público e sociedade civil organizada, ganhou contornos dramáticos com o não pagamento da segunda parcela do convênio, no valor aproximado de R$ 271 mil. O atraso, ainda sem explicação, forçou a prorrogação do prazo de conclusão do projeto, que seria de 12 meses. Além disso, fez com que a direção do Ipêterras tomasse a decisão drástica de interromper alguns serviços, o que comprometeu de forma significativa a continuidade do programa de Recuperação Ambiental e Implantação de Sistemas Agroflorestais no Território de Irecê.


No limite

A situação foi exposta ao secretário estadual de Meio Ambiente, Eugênio Spengler, por meio do ofício nº 042/2015, protocolado no último dia 5 de maio. Confira trechos do documento:

Os recursos da primeira parcela, linearmente liberados em 60% do valor global, foram destinados em sua maior parte aos investimentos, pois não tem como fazer aquisição de equipamentos e insumos de modo fracionado e outra parte à equipe e logística. A mão-de-obra familiar contratada e alguns insumos adquiridos nas comunidades estão sem pagamento, assim como o posto de combustível que não recebe a três meses e já suspendeu o fornecimento; nos últimos três meses o pagamento do transporte se encontra em atraso, com sugestão da empresa contratada pela suspensão temporária dos serviços.

Os cinco técnicos contratados, todos/as pais e mães, já estão na situação limite, com suas obrigações comprometidas. As pessoas que tem a receber, nos locais de implantação das áreas já começam a questionar a lisura da instituição executora, comparando a outras que não concluíram projetos nem justificaram. As visitas dos técnicos em campo tiveram frequência reduzida, mas mantida com recursos próprios, para não desestimular totalmente as bases de implantação. Mas as cobranças, frente às repetidas justificativas estão desestimulando a equipe e consequentemente os beneficiários.
 


Apesar do convênio ter sido assinado em sua gestão, o secretário (que também participou do lançamento do projeto em Irecê) ainda não se manifestou oficialmente. Nos bastidores do poder, a leitura é de que a dificuldade de honrar o compromisso acontece em função do contingenciamento de despesas promovido pelo governador Rui Costa para superar a crise financeira.

A reportagem do Sertão Baiano tentou, sem sucesso, contato telefônico com o secretário Eugênio Spengler. Também enviou, por duas vezes, e-mails para a Assessoria de Comunicação da SEMA, Casa Civil e Secretaria de Comunicação. Até a publicação da matéria, nenhum posicionamento. Mesmo assim, apesar do silêncio do Governo Rui Costa, a expectativa dos diretores do Ipêterras é de que as atividades sejam retomadas em agosto, caso a verba seja liberada.


Tradição hospitaleira do sertanejo

O Sertão Baiano visitou a Feira de Produtos de Base Ecológica de São Gabriel e algumas áreas no município, onde estão sendo implantados Sistemas Agroflorestais. A feirinha é realizada aos sábados, a partir das 5h, na Rua da União. Quem “madruga” e chega cedo pode encontrar uma grande oferta de produtos naturais e iguarias, como doces, bolos, conservas, queijos, coalhada e outras gostosuras. “Aqui, um sempre ajuda o outro, somos todos amigos. Não há disputa de preços. É tudo tabelado. O diferencial fica por conta da qualidade do que você vende e da sua simpatia na hora de agradar o freguês”, comenta Renilson Machado.

“Quando eu vi todos eles aqui, bonitinhos e organizados, falei pra mim mesmo: também quero fazer parte disto”, acrescentou Dina dos Santos, 56 anos, que - incentivada pelo sucesso do projeto - passou a produzir tomate no povoado de Matinha e quer se especializar em fruticultura.
 

Ao lado de João Gonçalves e do técnico Saulo Amorim Ramos, o Sertão Baiano ouviu o testemunho do agricultor Valdelício Elias de Oliveira, 72, conhecido como Seu Neguinho, sobre como ele tem reaproveitado folhas e galhos secos para fazer cobertura vegetal. “Antes eu queimava tudo... Agora, aprendi que esse material vai ajudar a melhorar a minha terra”. Em sua propriedade na comunidade do Guarani, Seu Neguinho também plantou mudas nativas, aperfeiçoou o sistema de irrigação e cria alguns animais. Entre eles, uma cabra que precisa de cuidados especiais: “essa aí, coitadinha, foi rejeitada pela mãe. Então, compro leite e eu mesmo dou pra ela todo dia. A bichinha tá crescendo forte, que tá danada”, revelou o ancião.

No Baixão dos Honoratos, a reportagem conheceu o trabalho desenvolvido por Hélio Rodrigues Rocha, 52, que carrega a responsabilidade de ser o “Guardião das Sementes Crioulas”. Quem explica é Saulo Amorim: “o trabalho do Sr. Hélio é de fundamental importância! Ele preserva as sementes que tradicionalmente eram cultivadas aqui na região, garantindo assim a soberania dos produtores. Com isso, eles não precisam das sementes de loja, as sementes transgênicas, modificadas geneticamente pelas multinacionais para impedir o reaproveitamento e escravizar quem vive no campo”.
 


Ao final da prosa, como manda a tradição hospitaleira do sertanejo, foi servido aipim, arroz com cenoura, calabresa e toucinho de porco caipira, acompanhado por farinha, café e com opções de pimenta em conserva ou “arrancada do pé na hora”.

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