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Renato Russo desnudado em livro

Em diário escrito numa clínica de reabilitação, líder da Legião Urbana conta como quase morreu três vezes de overdose.

11 de julho - 2015 às 10h51
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O GLOBO

Como nenhuma outra banda, antes ou depois dela, a Legião Urbana realizou a façanha de mapear a psiquê do jovem brasileiro em canções de enorme apelo (e sucesso), que ultrapassaram a barreira do tempo e ecoam até hoje. E uma espécie de esporte que alguns dos incontáveis apreciadores da Legião praticam com afinco é tentar descobrir, por trás daqueles discos que eventualmente mudaram suas vidas, acontecimentos da breve existência de Renato Russo (1960-1996), mentor e líder da banda, o cara que punha os seus sentimentos nas músicas. Dois volumes chegam às livrarias para facilitar o trabalho de exegese. O mais aguardado é “Só por hoje e para sempre — Diário do recomeço”, compilação de escritos de Renato ao longo dos 29 dias que passou, em 1993, na clínica Vila Serena, no Rio, para tratar-se do vício em álcool, heroína, cocaína e outras drogas — e que inspirariam as canções de “O descobrimento do Brasil”, álbum redentor que a Legião lançou no fim daquele ano (leia trechos do diário).

O outro é o novo volume da série “O livro do disco”, dedicado a “As quatro estações”, álbum da Legião de 1989, escrito pelo pesquisador Mariano Marovatto. O “Diário do recomeço” é o primeiro livro de escritos e desenhos inéditos de Renato, guardados pelo filho Giuliano Manfredini, a ser lançado pela Companhia das Letras. O relato pega o artista no que ele próprio classificou como o seu “fundo do poço”: uma desilusão amorosa (com o americano Robert Scott Hickmon) e a subsequente descoberta de que era soropositivo colaboraram para que ele entrasse numa espiral de abuso de drogas, vexames públicos (como quando seguranças o retiraram violentamente do Canecão, já que ele insistia em entrar no camarim após show do trio inglês de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer), culpa, ressentimento e solidão que culminaria, em 1992, com a decisão intempestiva de interromper a turnê que a Legião fazia para promover o álbum “V”.

Destruído física e emocionalmente, Renato entrou em Vila Serena para seguir o programa dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos e também o dos Narcóticos Anônimos (de onde vem o “só por hoje” presente no título do livro e que dá nome à canção de encerramento de “O descobrimento do Brasil”). Como parte do tratamento, o cantor escreveu o diário, em que abriu o coração, numa impiedosa autoanálise. Em relatos e reflexões sobre o mal que fizera a si mesmo e aos outros, ele falou francamente sobre sua condição homossexual, drogas, namorados, família e também sobre sua relação com companheiros de trabalho e amigos, alguns dos quais tiveram suas identidades ocultadas ao longo do processo de edição do “Diário”, que não foi escolhido por acaso para abrir a série de livros de arquivos do artista para a Companhia das Letras.
 

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— Renato deixou vários diários que teremos de selecionar e organizar, mas não é o caso do diário da clínica, que já estava praticamente pronto e tinha uma unidade muito clara — explica Sofia Mariutti, a editora do livro. — A decisão de trocar alguns nomes por iniciais veio para proteger as pessoas citadas em situações de intimidade. O valor maior do diário não está no que o Renato diz dos outros, mas no que diz de si. E, mais ainda, não está nos eventos, mas no que podemos pescar de influências e momentos determinantes para o seu processo criativo.

— Meu pai queria que aqueles escritos viessem a público. Era um visionário e escrevia para o futuro. Nada mais natural, portanto, do que publicar os textos que ele escreveu justamente para esse fim — observa Giuliano. — Com seu espírito aberto, meu pai acreditava (e eu também acredito) que a descrição dos dias em que passou internado podem ajudar muita gente a superar momentos de dificuldades e questionamentos como os que ele vivia naqueles momentos. Foi uma atitude corajosa por parte dele. E eu compartilho essa atitude. Ao mesmo tempo, atendendo com outra preocupação do meu pai, preservamos a intimidade das pessoas, por iniciais.
 


Desenhos do cantor, trechos do diário na sua própria caligrafia e reproduções de fichas do plano de tratamento preenchidas por ele dão um toque pessoal e terno ao livro, em que é possível acompanhar o desnudamento do artista e a sua transformação, de temperamental astro do rock em um paciente de fato paciente, buscando a conexão com o Poder Superior, e engajado nas atividades comunitárias. Segundo a editora do “Diário”, isso é só o começo.

— Há uma infinidade de material no baú. São dezenas de cadernos, com vários diários, mas também folhas soltas com as letras definitivas, as letras durante o processo criativo, poemas, textos em inglês, desenhos — enumera Sofia Mariutti. — O Renato era extremamente organizado, sabia do legado que deixaria e guardava tudo. Até cadernos de escola. Esperamos ter novidades até o fim do ano.

Arquivista literário por formação, Mariano Marovatto também contou com o acesso a um acervo exclusivo para escrever o livro sobre “As quatro estações”: o guitarrista Dado Villa-Lobos pôs à sua disposição a totalidade das gravações da qual o álbum de 1989 foi compilado. E saiu dele também com o seu Renato desnudado.

— Era um disco que ele começou do zero, em que não sabia o que ia dizer. E, buscando novos caminhos, ele chegou a essas canções falando da homossexualidade e da Aids — diz.

SERVIÇO

“Só por hoje e para sempre — diário do recomeço”
Autor: Renato Russo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34,90

“O livro do disco — As quatro estações”
Autor: Mariano Marovatto
Editora: Cobogó
Quanto: R$ 32

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