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Rio São Francisco é refúgio na seca

Margens do Velho Chico guardam algumas das maiores dunas fluviais do planeta. Sabia disso?

06 de junho - 2018 às 10h29
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Globo // G1

Em meio à aridez do Noroeste da Bahia, o São Francisco, o único grande rio a atravessar o Semiárido e um dos símbolos da crise hídrica no Brasil, cria um paraíso de campos inundados e dunas de 50 metros de altura, oásis para homens e bichos. Às margens do Velho Chico estão algumas das maiores dunas fluviais do planeta e um dos sertões menos conhecidos do país. Parecem desertos, mas são usinas de vida.A área total de dunas, alagadiços, brejões e veredas nunca teve o tamanho preciso determinado, mas se estende além dos 10.850 quilômetros quadrados da Área de Proteção Ambiental de Dunas e Veredas do Médio São Francisco, nos municípios baianos de Barra, Xique-Xique, Casa Nova e Pilão Arcado. Um ermo mais de sete vezes maior, por exemplo, que o município de São Paulo. Cientistas chamam as dunas de fósseis, relíquias de uma época em que o clima era ainda mais seco que o atual. Hoje, elas protegem um aquífero.

Para o sertanejo, as dunas e os brejões são sobrevivência. Seu futuro, assim como o de todo o São Francisco, o maior rio a nascer e desaguar totalmente em território brasileiro, estão em debate hoje, Dia Nacional de Defesa do Velho Chico. O rio perdeu 98% de suas matas protetoras de margens, sofre com a destruição de nascentes e com a poluição e teve uma redução de 50% do volume de água de sua bacia em 30 anos. Por isso, as dunas são também um dos poucos lugares onde o Velho Chico ainda respira.

O melhor caminho até os campos de dunas e os brejões continua a ser o próprio São Francisco, “a grande estrada histórica do Sertão”, nas palavras Dom Luiz Flavio Cappio, bispo de Barra e um dos maiores defensores do rio e de sua gente. Por terra, só existe uma única estrada de maior porte, não asfaltada nessa parte, a BA-61. Ela começa em Barra, atravessa comunidades rurais e é interrompida quando, na estação chuvosa, riachos temporários voltam a correr. Nas imediações do distrito de Ibiraba, um dos cenários de “Abril despedaçado” (2002), o premiado filme de Walter Salles com Rodrigo Santoro, o rio que servia de estrada se encheu em março e obrigou crianças e jovens a ir para a escola por dentro d’água. Os menores são levados nas costas ou no colo dos mais velhos.

— Quando o rio aparece, é bom. Mas a escola fica do outro lado, não tem ponte, e o jeito é atravessar pela água, resigna-se Albertina Queiroz, de 18 anos, com os cadernos numa mão e os sapatos num saco plástico em outra.

Enquanto Albertina e outros estudantes passam, pastores levam vacas e bodes para beber água, crianças tomam banho e lavadeiras se acomodam nas margens, como fazem as sertanejas desde sempre na História.

— A água do riacho é melhor que a do poço em casa. Preferimos lavar a louça e a roupa aqui, diz Marineide Pereira Castro, de 37 anos, ao despejar filhotes de lambaris que nadavam por entre as panelas levadas por ela para lavar nas águas amareladas.

Por Ibiraba passa o Icatu, um rio temporário. Nascido nos brejões, ele já chegou a percorrer 50 quilômetros. Agora, não chega a dez. Por permanecer por ao menos oito dos 12 meses do ano seco, seu leito é usado como estrada. Neste ano choveu um pouco mais do que nos seis anteriores — marcados pela pior seca já registrada no Semiárido. Ainda assim, nada que signifique o fim do sufoco para abastecimento, agricultura e geração de energia. Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, explica que houve apenas alívio temporário, já que começamos a entrar de novo no período seco, e as chuvas que caíram até abril foram insuficientes para compensar os anos de estiagem.

Nesse canto de sertão, areia e ser humano estão em permanente disputa. Ano a ano, à medida que a Caatinga é devastada e deixa de fixar o solo, as dunas avançam, tragam postes de luz, soterram casas e a estrada. Nem autoridades nem população detêm a destruição da Caatinga, resultado em boa parte da extração de lenha. Assim, novos postes são instalados, a estrada é desviada e as pessoas reconstroem suas casas. A vida segue por alguns anos até que os ventos novamente levem as dunas adiante, num ciclo de degradação.

— A gente não pode construir uma casa decente porque sabe que não vai durar. A duna chega e engole. Desde 1979 já mudamos quatro vezes, perdemos as casas para a areia. A duna vem vindo de novo. Quando não tiver jeito, nos mudaremos mais uma vez, diz dona Ilda Ribeiro, de 73 anos.

‘Mais gente para desmatar’

A casa dela fica a menos de cem metros da maior das dunas, cujo avanço recente já cobriu quase totalmente os postes de luz e deixou só a fiação de fora. Ainda assim, dona Ilda e o marido, João Pereira Matos, de 74 anos, criaram filhos e netos à frente do campo da Geleia, uma área debruçada sobre a margem esquerda do São Francisco. Quando a estiagem permite, plantam melancia e mamona. Vez por outra, seu João se aventura a subir e descer as dunas para tentar pescar. A família sobrevive da aposentadoria rural.

— O São Francisco está ruim de peixe. A rede volta do jeito que vai, vazia, afirma seu João, um dos 30 mil pescadores do Rio São Francisco.

O casal nasceu e morou por toda a vida em Mucambo, uma das comunidades no caminho dos brejões. Só na região de Barra são 47 brejos, diz Eronilton dos Santos Lopes, 29 anos, que faz trabalho voluntário de educação ambiental e recuperação de nascentes no município. Os brejões são áreas de inundação do Velho Chico, paraísos de água numa terra marcada pela estiagem. Representam a imagem histórica do rio. “O São Francisco, como um oásis no deserto, através dos sertões adultos, é na verdade a terra da promissão e o refúgio daqueles povos assolados pela seca prolongada e periódica”, escreveu Teodoro Sampaio, engenheiro e naturalista, filho de uma escrava negra, amigo de Euclides da Cunha, que usou as informações dadas por ele sobre o sertão da Bahia em “Os Sertões”. Integrante da Comissão Hidráulica do Império, em 1897, Sampaio percorreu o rio da foz a Pirapora, em Minas. É dele a referência histórica ao “cabra forte do Sertão”.
 


Mas, na seca severa de 2012 a 2017, a pior registrada em cem anos, até os brejões sofreram, e parte secou.

— Seca sempre existiu. Mas agora tem mais gente para desmatar, explorar e destruir nascentes. É por isso que muitas delas desapareceram e alguns rios temporários sumiram de vez ou encolheram. Infelizmente, muitas pessoas ainda acham que a água não vai acabar e aterram nascentes ou usam até esgotar, lamenta Lopes.

Multas podem render investimentos de R$ 2,5 bilhões no rio

A Bacia do São Francisco foi escolhida para receber recursos do programa de conversões de multas ambientais, quase nunca pagas no país. O Ibama espera aplicar R$ 2,5 bilhões em 20 anos em projetos de recuperação do São Francisco, se empresas multadas aderirem ao programa. A bacia se estende por 640 mil km², mais que a França inteira. Banha seis estados (MG, BA, PE, AL, SE e GO) e o Distrito Federal. Ela inclui não apenas as águas do Velho Chico propriamente dito, mas toda a área irrigada por seus 168 afluentes. Cerca de 16 milhões de pessoas vivem nos 507 municípios da bacia. Há 36 etnias indígenas e dezenas de comunidades quilombolas. É também na bacia do Velho Chico que três dos principais biomas do Brasil se encontram: Cerrado (57,2% do território), Caatinga (39,5%) e Mata Atlântica (3,3%).

O Velho Chico nasce em Minas Gerais e percorre 2.863 quilômetros até a foz, na costa atlântica, entre Alagoas e Sergipe. Boa parte (60% dos municípios) da bacia está sujeita à seca e sofre com a escassez de água. O maior desafio é atender à demanda da agricultura, que responde por 77% do consumo de água na bacia.

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