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SEM COMPROMISSO COM O MÉTODO (Para Doido Ler)

Reflexões sobre a loucura nossa de cada dia e de como essa condição humana tem sido tratada pelo Estado e retratada pela arte no Brasil.

04 de março - 2024 às 14h23

* Pedro Araújo Sampaio   

Assisti ao filme Holocausto Brasileiro, um documentário produzido por Armando Mendz e Daniela Arbex, lançado em 2016 pela HBO e relançado pela Netflix no domingo passado (25/02). O filme se baseia em livro homônimo da jornalista que recebeu prêmio Jabuti na categoria livro-reportagem. Até então desconhecia a existência do filme, mas não por completo a história do Hospital Colônia de Barbacena. Antes de chegar ao ponto, inevitável relacionar a aquisição dos direitos comerciais do documentário pela plataforma de stream com o cenário de guerra instaurado na Palestina, ou, até mesmo, com a analogia entre genocídio e holocausto feita pelo Presidente Lula, durante sua viajem à Etiópia no dia 17 de fevereiro.  

Vincular uma coisa e outra, no final das contas, significa muito, porque conjura o ostracismo de uma ferida assintomática na história do Brasil com a potência da empresa de stream em dar relevância a certos conteúdos, com base, é claro, no oportunismo do mercado. Não há qualquer novidade a esse respeito, faz parte de um jogo que não superamos, mas não deixa de impressionar a consagração paradoxal de um filme que fala justamente sobre silenciamento, no “Top 5” da plataforma (na semana do lançamento), quero dizer, por motivo outro que não seja a própria desgraça retratada. 

A tônica do documentário é a desumanidade das práticas pseudocientíficas institucionalizadas no país durante o século XX, regidas pelo repertório do positivista que, anunciando cura, na verdade produziu o aniquilamento de ao menos 60 mil pessoas. E o termo aniquilamento aqui se justifica, ao nosso ver, porque, para além da morte física, as pessoas que passaram pelo Hospital Colônia tiveram suas dignidades reduzidas ao ponto máximo da inexistência. É pior do que o ser indigente, pois nesse caso a pessoa existe e tem o mínimo direito de gozar, em vida, da consciência sobre as coisas ou sobre si mesma. A metodologia aplicada aos mentalmente “adoecidos” no Brasil garante dizer que nossa laranja mecânica não foi brincadeira: o sadismo das práticas sustentadas por um cientificismo eurocêntrico contestou a sanidade de seus mais fies partidários. A concepção impregnada amontoou pessoas para eletrocussão e através de pílulas varreu qualquer centelha pertencente à individualidade humana. 

É nesse mesmo período que produzimos figuras como Nina Rodrigues, com produções que endossaram a ideia de atavismo sobre os povos africanos, discurso que desde sempre sustentou o modelo de produção econômica escravista no Brasil, justificando a redução do ser humano ao conceito de propriedade/coisa. A etiologia, nesse caso, é o paradigma problemático que autorizou a reprodução do “criminoso nato” (Cesare Lombroso), identificado, não por mera coincidência, através de traços fenotípicos de pessoas marginalizadas.   

Não deixamos de mencionar outro assecla importante desse movimento conjunto no país: José Rodrigues da Costa Dória, médico-legista e político sergipano, protagonista das primeiras campanhas de “demonização” da Cannabis Sativa no Brasil, marcadas pela profusão de inverdades sobre a planta, seus efeitos e significados. A história que se desenvolve nesse movimento sanitarista vincula o “fumo de Angola” com as populações africanas, estas levadas à loucura e delinquência pelo consumo do “veneno”. Disso se forma o caldo sociocultural propício à estruturação discriminatória de nossas experiências mais atuais, de modo que, esses e outros atores mostraram como a ciência, enquanto lugar de poder, atende interesses particulares de grupos hegemônicos, por meio do aprisionamento de corpos e mentes.  


Aí vem uma alusão literária inevitável: o filme fez lembrar O Alienista, a novela machadiana publicada em 1882, em que o maior dos literatos já exercitava uma crítica ao contexto que anos depois virou política de estado e moda científica. Para quem não leu: imagine aí um psiquiatra (Dr. Bacamarte) fascinado por teorias sobre doença mental, vai lotando de pessoas seu manicômio (a Casa Verde), de modo que, tempos depois, na cidade de Itajaí-RJ, onde se passa a novela, tinha mais gente dentro do manicômio do que fora. Ao final, percebendo o equivoco de suas teorias sobre a loucura, o psiquiatra decide libertar todos(as), concluindo: “se a maioria apresentava desvios de personalidade e não seguia um padrão, então louco era quem mantinha regularidade nas ações e possuía firmeza de caráter”. A partir disso, ele revisa sua “ciência” e a narrativa chega ao trágico fim: “como ninguém tinha uma personalidade perfeita, exceto ele próprio, o alienista conclui ser o único anormal e decide trancar-se sozinho na Casa Verde, vindo a falecer poucos meses depois”. 

O que dizer então das internações de Lima Barreto iniciadas em 1914, por alcoolismo, fazendo surgir, entre outras, obras como O Diário do Hospício ou Cemitério dos Vivos, cujo apagamento é latente no caráter póstumo que carregam? No Cemitério dos Vivos o jornalista choca quando diz: “os outros deliram em redor de mim e, se não choro, é para não me julgarem totalmente louco. Imagino que essa convicção se enraíze nos médicos e me faça ficar aqui o resto da vida”. O que dizer da internação de Gilberto Gil, o homem mais lúcido do Brasil? Perco o leitor, mas não deixo, por último, de citar Sérgio Sampaio, um dos maiores poetas da MPB, que na sua genialidade destilou beleza sobre um estado de espírito conflituoso, com a canção Que Loucura (1976): 

“Fui internado ontem
Na cabine 103
Do hospital do Engenho de Dentro
Só comigo tinham dez
Eu tô doente do peito
Eu tô doente do coração
A minha cama já virou leito
Disseram que eu perdi a razão
Eu tô maluco da ideia
Guiando carro na contramão
Saí do palco, fui pra plateia
Saí da sala e fui pro porão.”


De volta ao comentário do filme, não senti muito com a falta de ênfase sobre os aspectos raciais da clientela, considerando a evidência absoluta desse fator em todo e qualquer sequestro de pessoas (Foucault) no Brasil, em que se segue o protocolo genocida inerente aos dispositivos de racialidade (Sueli Carneiro). Mudando de pau pra cacete: me ocorre agora pensar se Holocausto Brasileiro teria alguma projeção caso simplesmente não tivesse o nome “Holocausto” no título ou se o Presidente da República não tivesse recorrido à analogia. Esse algoritmo assemelha com a gente na seleção daquilo que importa, por isso, antes do esquecimento, convém lembrar que o dispositivo de poder (Foucault) aplicado em Barbacena permanece onipresente, embora invisibilizado.  

A instituição era parte de uma realidade trivial à época, como hoje para nós tem sido o encarceramento de 1 milhão de pessoas – em sistema penitenciário declarado Estado de Coisas Inconstitucional (EIC) – violação generalizada e em massa de direitos fundamentais – pela Suprema Corte na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n° 347. A Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial) formalizou uma nova maneira de lidar com os transtornos mentais, mas nem de longe pôs fim à metodologia positivista de causar sofrimento. A mudança da lei representou o abandono de uma ferramenta de segregação de pessoas indesejadas por outras mais eficientes.  

Permanecem em vigor, entretanto, os HCTs (Hospitais de Custódia e Tratamento), onde se executam as famigeradas medidas de segurança, fundamentadas na ideia de periculosidade, em substituição à culpabilidade, pressuposto da pena criminal. Lembro do impacto que me causou uma visita ao HCT de Salvador, situado na Baixa do Fiscal, região suburbana da cidade. Naquela ocasião já vinha prestando auxílio jurídico gratuito em todas as unidades do Complexo Penitenciário da Mata Escura, como estagiário do Patronato de Presos e Egressos. Em nenhuma delas, entrementes, a sensação de desumanidade foi tão intensa quanto vivenciado no HCT. Trata-se de um ambiente alheio a qualquer expectativa atual de civilização (um pedaço de Idade Média no meio da metrópole), ficando a indicação do documentário A Casa dos Mortos (2009), da antropóloga Débora Diniz.     

Em todo caso, se não é pelo encarceramento, subsidiariamente a negação do outro, como sujeito de direito, permanece emaranhada no cotidiano, sendo implacável na exclusão proposital de certos indivíduos (loucos, drogados, bandidos, prostitutas etc. etc.). Essa semana mesmo vi um vídeo de um radialista ireceense relatando a situação de uma pessoa que, supostamente portadora de transtornos psíquicos, tem provocado, segundo ele, incômodo aos comerciantes do centro. Enquanto ele fala, em tom sensacionalista, transcorre imagens de um homem negro articulando movimentos de capoeira em cima da faixa de pedestres da Praça Mário Dourado Sobrinho (Praça das Rádios), cuja fonte escafedeu-se. No término do alarde, o radialista finaliza escancarando a índole de seu pensamento, motivo principal desse colóquio: “depois a polícia pega e vem os direitos humanos reclamar”. Bom, é isto. 

Olhando para trás, uma questão estimula outra analogia: o que vem depois de um Holocausto? Qual é o vínculo que todos esses fatores possuem entre si? Certo é que não podemos desejar a repetição da história, porque as marcas estão gravadas nos corpos de Hiroshima e Nagazaki, depois que um clarão desintegrou tudo. Não será possível apagar nunca o trauma horroroso de Auschwitz, nem a morte de milhares de pessoas inocentes na Palestina, durante todos esses anos. As palavras apocalípticas de Vladimir Putin; a experiência de governos e movimentos de extrema-direita; as políticas criminais de “guerra as drogas"; o delírio coletivo chamado de bolsonarismo; Trump; a ditadora norte-coreana; um argentino que palestra com cães falecidos; ou a simples declaração de um radialista vociferado; são apenas algumas notas que compõem a melodia insana de ódio pelo outro, em sua diversidade, como foi no Hospital Colônia de Barbacena. E você que leu a retórica de um maluco beleza, de que lado está? Se percebe mais Alienista ou mais Alienado(a)?

  


* Pedro Araújo Sampaio, advogado e professor de Ciências Criminais da Faculdade Irecê (FAI) e da Faculdade Pitágoras.

 
 

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