Para muitas mulheres, o cabelo é um símbolo de identidade, força e ancestralidade. Para mulheres negras, ele carrega ainda o peso da resistência e do orgulho. Quando a perda capilar se torna uma realidade — como nas alopecias cicatriciais — o que está em jogo, na maioria das vezes, não é apenas a estética, mas a autoestima. Foi com esse olhar atento e humanizado que a médica e pesquisadora carioca Nadia Tavares El Kadi decidiu dedicar sua carreira ao estudo do couro cabeludo negro.
Nadia foi uma das quatro pesquisadoras premiadas com bolsas de R$ 50 mil cada na 1ª edição do Prêmio Dermatologia + Inclusiva, promovido pelo Grupo L’Oréal no Brasil, no 35º Congresso Brasileiro de Cirurgia Dermatológica, em Salvador.
Mestre em Medicina pela UERJ, doutoranda na UFF e premiada internacionalmente por sua pesquisa, Nadia lidera um estudo inédito sobre a estrutura capilar de mulheres negras saudáveis, com o objetivo de antecipar e melhorar o diagnóstico das doenças que provocam a perda irreversível dos fios. “Essas alopecias são mutilantes. Quanto antes o diagnóstico for feito, melhor o prognóstico. Porque, uma vez que ela perder, ela não consegue recuperar. Isso tudo é muito estigmatizante para qualquer mulher”, afirma a pesquisadora.
A pesquisa, que utiliza a tricoscopia — um exame de imagem detalhado do couro cabeludo — parte de uma ideia simples, mas revolucionária: para entender o que está doente, é preciso, antes, conhecer o que é saudável. Nadia e sua equipe acompanham mulheres negras sem queixas capilares, buscando traçar parâmetros próprios para esses grupos. “Poucos estudos se têm sobre o couro cabeludo negro. A maioria é feita em grandes centros brancos”, critica Nadia.
Foi só em 2015 que a Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, criou o primeiro ambulatório de alopecias do país — liderado pela professora Maria Fernanda — com foco em mulheres negras, diante da realidade da população brasileira. A iniciativa plantou as bases para o trabalho de Nadia, que hoje ganha destaque internacional por colocar as mulheres negras no centro da ciência dermatológica.
“Os achados da nossa pesquisa vão permitir que o dermatologista olhe para um couro cabeludo negro e consiga entender melhor o que é normal e o que é sinal de alerta. As hastes capilares negras são diferentes das caucasianas e asiáticas, e isso precisa ser levado em conta. Essa diferença não pode continuar sendo invisível”, explica a médica.
Quando questionada sobre a negligência médica relacionada ao racismo estrutural, Nadia é cautelosa, mas direta: “Negligência é uma palavra muito forte, mas existe um desconhecimento. E quando a gente fala de cabelo, tudo ainda é muito novo. Como temos mais estudos em pessoas brancas, deixamos passar sinais importantes na pele negra. Falta preparo, não má intenção”.
Mais do que técnica, o que move Nadia é o impacto que seu trabalho pode causar na vida de milhares de mulheres. “O cabelo é muito importante para qualquer mulher, não é verdade? Às vezes, a alopecia vai existir, mas se for detectada no início, ninguém nem vai perceber. E está tudo bem. Agora, se ela evolui e a mulher começa a sentir vergonha por onde passa, isso vira um sofrimento silencioso e cruel”.
“As laces e peruquinhas que existem no mercado seguem, em sua maioria, um padrão caucasiano. Elas não refletem os estilos capilares negros, nossos penteados étnicos, nossos traços culturais. As pessoas negras têm orgulho de quem são. Por isso, é tão importante salvar esses cabelos — pra que essas mulheres possam continuar fazendo aquilo que tanto as orgulha: usar o cabelo como símbolo de liberdade e identidade”, concluiu Nadia.