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Tudo em ‘Torto arado’ é presente no mundo rural do Brasil

O baiano Itamar Vieira, cujo romance ganhou o Prêmio Jabuti, faz declaração de amor à terra ao escrever sobre as histórias de luta na Chapada Diamantina.

07 de dezembro - 2020 às 11h42
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EL PAÍS Brasil / Foto: São Paulo Review

JOANA OLIVEIRA 

Quando Bibiana e Belonísia nasceram, tinham outros nomes. O baiano Itamar Vieira Junior tinha 16 anos quando começou a escrever Torto arado (Todavia), que ganhou narrativa, no entanto, permaneceu a mesma: a história de duas irmãs, contada a partir de sua relação com o pai e com a terra onde viviam. O título, retirado do poema Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga, tampouco mudou. O que veio depois foi a vontade de levar a história para o sertão da Chapada Diamantina, longe da capital ou do Recôncavo Baiano, onde a maioria dos seus conterrâneos ambientam suas narrativas. “A gente fala do sertão, do semiárido, parece que se trata de uma coisa só, mas o sertão da Chapada tem uma regularidade de chuva, uma diversidade de paisagem, de mato, que salta aos olhos”, conta Vieira Junior, hoje com 41 anos, ao EL PAÍS, por telefone.

Profundamente influenciado pelas leituras de Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, ele escreveu as primeiras 80 páginas da obra, mas o manuscrito se perdeu durante uma mudança da família. Vieira Junior só retomaria a história vinte anos depois, quando, formado geógrafo e funcionário público do INCRA, conheceu as realidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e assentados no sertão baiano e maranhense. “Ao longo de 15 anos, aprendi muito sobre a vida no campo e vi um Brasil muito diverso do que vivemos cotidianamente nas cidades. 

Existe uma vida muito pulsante no campo, uma vida que está em risco, porque essas pessoas vivem em constante conflito na defesa de seus territórios. Tudo isso reacendeu a chama de escrever Torto arado”, conta o escritor, que lembra que o Brasil é um dos países com maiores índices de violência no campo. No ano passado, foram registrados 1.883 conflitos, incluindo 32 assassinatos, de acordo com o levantamento anual realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Em 2017, quando escrevia a segunda —e definitiva— versão do romance, nove trabalhadores rurais com os quais Vieira Junior teve contato foram assassinados, seis deles em uma chacina. “Foi um ano brutal”, lembra. São as vidas e lutas dessa gente que estão contadas em sua obra, que acompanha a família das irmãs Bibiana e Belonísia no cotidiano de Água Negra, uma fazenda onde os trabalhadores aram a terra sem receber salário, tendo apenas o direito de construir casebres de barro que precisam ser reconstruídos a cada chuva, pois o fazendeiro não autoriza construções de alvenaria. 

Quando não estão plantando e colhendo nas terras do patrão, cultivam roças nos próprios quintais para comer e ganhar um pouco dinheiro vendendo abóbora, feijão e batata na feira. São quase todos negros, descendentes de escravizados libertos havia poucas décadas, como é o próprio autor. Descendente de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de indígenas Tupinambás, Vieira Junior construiu um sertão real, que tem vida e verde, graças, em parte, às histórias dos avós paternos, que viveram no campo, na região de Coqueiros do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano. 

O torto arado que dá nome ao livro é um objeto que, usado pelos antepassados das protagonistas na lida com a terra, atravessa o tempo para representar essa herança escravocrata de tantas desigualdades. Narrado primeiramente por Bibiana, depois por Belonísia e, na terceira parte, por outra personagem, o romance já começa com o clímax de um acidente: crianças, as duas irmãs —filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual— encontram uma faca da avó Donana. A partir daí, a linguagem, central na narrativa desde a prosa melodiosa com que o autor escreve, torna-se ainda mais importante. O não dito é tão importante quanto o que está impresso no papel. Uma irmã torna-se a voz da outra, e, como estão descritos os gestos, mas não as palavras das personagens, o leitor não sabe quem foi mutilada até chegar a um terço do romance.

“Essa faca corta a vida das personagens muitas vezes, é um símbolo desse duplo que são as irmãs, que se dividem para depois ser uma só”, explica o autor, que participa, no sábado, da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ―neste ano pandêmico, o principal encontro do gênero do país será online. De fato, a dualidade é outra constante em Torto arado: a voz e o silêncio, o medo e a coragem, a fertilidade e a infertilidade, a cidade e o campo são alguns dos opostos que definem as irmãs. Enquanto Bibiana sonha em ser professora e foge para a cidade para se formar, regressando depois com uma família de muitos filhos, Belonísia é uma força da natureza, privada da maternidade e cuja única educação que lhe interessa são os ensinamentos do pai sobre a terra. Aos poucos, ambas desenvolvem uma consciência política ao seu próprio modo. Bibiana se aproxima de sindicatos e movimentos sociais para reivindicar seus direitos. Belonísia luta, quiçá sem saber que o faz, no campo, enfrentando a violência machista e a ganância dos poderosos. “Sua consciência política se expressa quando o gerente da fazenda chega e quer levar os melhores produtos da colheita e ela diz não. Mesmo que colhesse mais do que precisava, dividia com a família e os vizinhos para não ceder o alimento aos donos da terra”, exemplifica o autor.

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